sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Pressupostos Teóricos e Metodológicos


Entendemos como um aspecto fundamental da Arte a sua condição potencializadora de uma porosidade entre categorias consensuais e estabelecidas, permitindo uma expansão da dimensão sensível do real. Essa porosidade, por sua vez, é produzida por rupturas cognitivas que produzem campos de tensão e zonas de indefinição. Assim sendo, essas rupturas poderiam ser entendidas como produtoras genuínas de saberes, pois se constituiriam em ‘locais’ de subjetivação e produção de singularidades e diferenciações.

Como pista inicial acerca dessa possível ruptura, propomos a investigação do conceito de Schnittstelle6, em Siegfried Zielinski, que trata da dramatização da diferença e a desnaturalização da interação homem/computador: uma interação como campo de tensão intransponível (ao contrário da idéia usual de interface: membrana permeável que proporciona a entrada no mundo do computador). A dramatização da diferença e do estranhamento se daria pela desconstrução das metáforas e analogias através de quebras de pactos ficcionais7 via explicitação dos construtos manifestos no meio (construtos sociais) e do meio (sua linguagem, sua estrutura, sua coerência e consistência). Verificaremos, em nossa pesquisa, em que nível a noção de Schnittstelle remete à leitura que Gianni Vattimo faz do conceito de ‘choque’ em Walter Benjamin e de ‘golpe’ em Heidegger. Como mostra Laymert G. dos Santos8, Vattimo utiliza-se desses conceitos para defender a hipótese de a possibilidade de politização, no âmbito da Arte, via deslocamento e liberação das diferenças.

Em paralelo a essa abordagem inicial, será realizado um aprofundamento nos conceitos de potencial/virtual e real/atual e seus processos de virtualização, atualização, realização e potencialização, como entendidas por Pierre Lèvy e Deleuze. Nesse sentido, pretendemos demonstrar a natureza determinista dos meios informáticos quando entendidos como fenômenos que pertencem ao território do “potencial”. Essa associação está calcada no seguinte entendimento do que seria potencial (ou ‘possível’): “o possível já está todo constituído, mas permanece no limbo. O possível se realizará sem que nada mude em sua determinação nem em sua natureza. O possível é exatamente como o real: só lhe falta a existência. A realização do possível não é uma criação, pois uma criação implica também a produção inovadora de uma idéia ou de uma forma. O possível é estático, já constituído.”9

Para melhor compreendermos essa associação cabe recorrer ao entendimento que Pierre Lévy tem sobre o meio informático e sua qualidade como sendo potencial: “Esse universo de possíveis pode ser imenso, ou fazer interferir procedimentos aleatórios, mas ainda ssim é inteiramente pré-contido, calculável. Deste modo, seguindo estritamente o vocabulário filosófico, não se deveria falar em imagens virtuais para qualificar as imagens digitais, mas de imagens possíveis sendo exibidas. O virtual só eclode com a entrada da subjetividade humana no circuito, quando num mesmo movimento surgem a indeterminação do sentido e a propensão do texto a significar, tensão que uma atualização, ou seja, uma interpretação, resolverá na leitura.”10

Essa noção nos ajudaria a traçar associações entre o conceito de potencial como território do pré-estabelecido (no caso dos meios informáticos), da convenção e do consenso e a idéia de ordem policial em Rancière. Cabe observar que o próprio Rancière talvez já tenha apontado para essa aproximação, ao tratar a simulação/simulacro, norteado pela visão dada por Jean Baudrillard, como sendo um processo de desrealização: “A ‘perda do real’ é, na verdade, uma perda da aparência. O que ela ‘libera’ não é uma política nova do múltiplo contingente, é a figura policial de uma população exatamente idêntica à enumeração de suas partes.”11 A partilha e a contagem se assemelhariam, aqui, à natureza do potencial: a partilha seria um processo de potencialização e, por conseguinte, homogeneizante e restritiva quanto às possibilidades de atuação (pois pré-determinante).

Como colocado no “Resumo”, a criação mediada por computador se sujeita à seguinte questão: Quando se cria estamos apenas escolhendo uma opção previamente estabelecida ou estamos gerando novas opções?

Como vimos acima, existe uma grande diferença entre potencial e virtual. O potencial estaria na ordem de seleção e o virtual na ordem de criação. Portanto, para se legitimar um processo criativo, não basta termos opções previamente estabelecidas. Mesmo que o universo de opções a serem tomadas nos pareça tender ao infinito, esse universo, num meio computacional/matemático sempre será finito, nunca dando conta da totalidade de eventos que qualquer fenômeno ou atividade criativa possui fora do meio computacional.

A rigor, portanto, nada se cria e sim tudo se seleciona quando “estamos”em um meio computacional. O que podemos amenizar nesse processo determinístico é a ampliação do leque de escolhas e das inferências associativas que podem nascer a partir delas. Essa ampliação é propiciada pelo conhecimento dessa limitação, isto é: cientes dessa qualidade do meio, se quisermos ser atuantes, devemos ser capazes de interferir no código/programação, alterando as regras do jogo impostas pelo autor da interface. Só assim estaríamos agindo como co-autores, entendendo nesse caso, autor não como sendo aquele que possui total liberdade de escolha e sim aquele que potencializa as opções (via programação) para depois poder realizá-las no momento da escolha.

No caso de uma mediação que naturaliza a interação, o agravante se dá pelo fato que as escolhas estão sendo camufladas sob a imagem de liberdade de escolha, pois ao facilitar sua interação com a máquina, essa mediação entorpece o usuário com a ilusão de que produtividade facilitada equivale à criação viabilizada.

Uma outra convergência que esta pesquisa pretende demonstrar é aquela entre o conceito de ‘população’ (que traz consigo a ‘ordem policial’) e idéia de ‘potencial’ (presente na modelação de interfaces digitais). Como já havia colocado Foucault sobre a ‘construção’ da população12, o povo passa a ser entendido e modelado em termos estatísticos, em que a busca por padrões de comportamento ajudam a criar a possibilidade de previsão de tendências, tornadas então probabilidades. Em Rancière, o “povo presente sob forma de estatística é um povo transformado em objeto de conhecimento e de previsão que afasta a aparência e suas polêmicas”13.

A modelação da interface e seu futuro uso são mais do que parte de um processo de disciplinarização do corpo e conformação de uma identidade (em termos foucaultianos). É uma modulação de elementos componentes de um corpo múltiplo, um corpo dividido em suas ações: “um corpo com inúmeras cabeças, se não infinito pelo menos necessariamente numerável”14. A modelação, portanto, faz parte do movimento de construção de populações (como conceituado por Foucault), enxergando o indivíduo não como corpo único (como as disciplinas o fazem) mas sim como elemento constitutivo ou parâmetro de um padrão:

"Um corpo não é disciplinado. Ele é identificado e sua ação é particionada, determinada."15

Padrões de comportamento determinando padrões de uso da máquina computacional. Esses usos, por sua vez, são pré-determinados, de ordem "potencial", e correspondem à lógica policial que ordena e estabelece campos de participação:

"A polícia é, na sua essência, a lei, geralmente implícita, que define a parcela ou a ausência de parcela das partes. Mas, para definir isso, é preciso antes definir a configuração do sensível na qual inscrevem umas e outras. A polícia é assim, antes de mais nada, uma ordem dos corpos que define as divisões do modo de fazer, os modos de ser e os modos de dizer, que faz que tais corpos sejam designados por seu nome para tal lugar e tarefa; é uma ordem do visível e do dizível que faz com que essa atividade seja visível e outra não o seja, que essa palavra seja entendida como discurso e outra como ruído."16

A aparição, nas sociedades de controle, é numérica, estatística e sua manipulação e regulação e feita por mecanismo de modulação:

"Os diferentes internatos ou meios de confinamento pelos quais passa o indivíduo são variáveis independentes: supõe-se que a cada vez ele recomece do zero, e a linguagem comum a todos esses meios existe, mas é analógica. Ao passo que os diferentes modos de controle, os controlatos, são variações inseparáveis, formando um sistema de geometria variável cuja linguagem é numérica (o que não quer dizer necessariamente binária). Os confinamentos são moldes, distintas moldagens, mas os controles são uma modulação, como uma moldagem auto-deformante que mudasse continuamente, a cada instante, ou como uma peneira cujas malhas mudassem de um ponto a outro."17

A sistematização de uma população em um nível macro (via análise de seus padrões emergentes) determina e transforma um nível micro (elemento/parâmetro de um padrão) através de uma modulação que proporciona uma alteração/deformação do padrão vigente. Essa deformação, por sua vez, acontece na direção de um equilíbrio, através de mecanismos de regulação e controle, eliminando possíveis aleatoriedades presentes na população. Similarmente, contrariamente à noção de uma atuação unicamente disciplinar local, no detalhe, no corpo individual, a modelagem da interface também age globalmente como uma modulação (dos parâmetros do padrão) e pode ser considerada análoga aos procedimentos regulatórios executados pela ‘bio-política’. Ao se regular um parâmetro ou conjuntos de parâmetros (que representam o homem para esse sistema regulador e normatizante), regula-se a população onde esses parâmetros (ações) se inserem. Toda modelação de interfaces, como vistas em técnicas de ‘lnteração Homem Computador’, mantém a parametrização regulatória do usuário final e suas ações como dado de projeto. Essa regulação atende à lógica da produtividade, da velocidade e da eficácia. Essas qualidades se propagam para diversos níveis da existência humana, contaminando relações sociais e pessoais com essa lógica. Nos tornamos produtos consumíveis e realizamos nosso próprio marketing, potencializado pela multi-conectibilidade instantânea e telemática de nossas capacidades ‘cyborgs’18. Na sociedade de controle, onde vigora a ordem policial, diferentemente dos processos disciplinares, agimos integrados a uma rede e nossas ações são modeladas por sistemas de modulação. Em relação ao ‘fazer viver’ de Foucault e a capacidade de se aumentar a duração da vida, com as tecnologias de informação se aumenta a intensidade da vida pela distensão do tempo via eficiência no uso deste (inclusive de eficiência nos modos de se relacionar com outros seres humanos).

Como nos alerta Foucault a disciplinarização do corpo e a regulação da população podem coexistir e até se fortalecerem mutuamente, pois não estão no mesmo nível. Podem, portanto articular-se uma com a outra, atuando conjuntamente na maximização de forças (do indivíduo e da população) e posterior extração destas. No entanto, ao contrário das disciplinas, a divisão não tem como unidade o corpo, o indivíduo, e sim suas ações:

"As sociedades disciplinares têm dois pólos: a assinatura que indica o indivíduo, e o número de matrícula que indica sua posição numa massa. É que as disciplinas nunca viram incompatibilidade entre os dois, e é ao mesmo tempo que o poder é massificante e individuante, isto é, constitui num corpo único aqueles sobre os quais se exerce, e molda a individualidade de cada membro do corpo (Foucault via a origem desse duplo cuidado no poder pastoral do sacerdote - o rebanho e cada um dos animais - mas o poder civil, por sua vez, iria converter-se em "pastor" laico por outros meios). Nas sociedades de controle, ao contrário, o essencial não é mais uma assinatura e nem um número, mas uma cifra: a cifra é uma senha, ao passo que as sociedades disciplinares são reguladas por palavras de ordem (tanto do ponto de vista da integração quanto da resistência). A linguagem numérica do controle é feita de cifras, que marcam o acesso à informação, ou a rejeição. Não se está mais diante do par massa-indivíduo. Os indivíduos tornaram-se ‘dividuais’, divisíveis, e as massas tornaram-se amostras, dados, mercados ou ‘bancos.”19


Processos de modulação e busca de padrões emergentes são caros para áreas do conhecimento como Teoria dos Sistemas, Complexidade, Inteligência Artificial e até mesmo Cibernética: o design do usuário (visto como parcela de uma população homogeneizada) é um design de tendências convertidas (ou distorcidas) em probabilidades. Em Arquitetura, refletindo conceitos provenientes dessas áreas, essa modulação também acontece, não apenas quando se modela o futuro usuário, mas também quando busca-se dialogar com um modelo numérico de cidade, de seus fragmentos e de territórios nela contidos:

“By identifying what caracterizes a place with new parameters like the intensity of flows, the bonds, the climates, the proximities, the territoriality in all its complexity, the social evolutions, we are able to connect the tool of visualization and transformation to the territory. To bind technology to an attitude of the situation means to connect the numerical to reality.”20

Para melhor entendermos essas associações, será necessário uma contextualização histórica dessas áreas, traçando correlações quanto aos valores (por vezes ideológicos) presentes nas modulações citadas acima, que apontam, em primeira análise, para a busca do ‘controle’ como recurso último21. Será necessário entender em que grau essas questões possuem relações com a idéia de ‘Phylum maquínicos’ em Félix Guatarri22 e o conceito de ‘informação’ em Gilbert Simondon23. Aventamos, ainda, a possibilidade de investigar casos como o Teorema da Incompletude de Gödel (impossibilidade de axiomatização total), a geração de números aleatórios e o problema da parada de Turing (impossibilidade de se modelar matematicamente o ‘acidental’). Esses casos servirão como contrapontos em relação aos limites da consistência do meio e da impossibilidade de modelação completa do real (no nosso caso principalmente via ‘simulação’).

Essas associações teóricas serão confrontadas com um campo empírico por nós entendido como obras artísticas e arquitetônicas, que buscaram utilizar o meio digital não como mais uma representação ou apresentação docilizante de um conhecimento científico (na direção do que normalmente é chamado de “divulgação científica”), mas sim utilizado poeticamente, tensionando e desconstruindo esse conhecimento, potencializando um “descaminho”, uma ruptura. Quando alcançada, essa ruptura seria, em termos deleuzeanos, ‘virtualizante’, ou seja, uma heterogênese do humano e seus saberes, através da “fluidificação das distinções instituídas, aumentando os graus de liberdade”24. Em última instância, esses espaços se configuram como meios politizantes onde, idealmente, “toda subjetivação é uma desindentificação, o arrancar à naturalidade de um lugar, a abertura de um espaço de sujeito onde qualquer um pode contar-se porque é o espaço de uma contagem dos incontados, do relacionamento entre uma parcela e uma ausência de parcela”25.

É importante ressaltar que essa quebra acontece também metalinguisticamente, no sentido do entendimento da interface como campo de tensão: o próprio meio é desconstruído e desestabilizado.

Partindo-se da investigação em andamento, listaremos uma prévia de obras artísticas e arquitetônicas que correspondem aos interesses dessa pesquisa.

As obras artísticas escolhidas visam demonstrar como a arte digital vem dialogando com conceitos científicos que proporcionariam um maior entendimento da relação entre o virtual e o concreto. Nesse sentido, nos interessam obras que se posicionem sobre modelações de eventos tangíveis (simulação de eventos naturais ou culturais). As posições serão analisadas quanto sua direção, contrária ou favorável, em relação a uma naturalização desses conceitos. Pretendemos, assim, demonstrar como artistas se colocam sobre os valores, inerentes ou embutidos, relativos à idéia de controle e pré-determinação.

O critério de escolha de obras arquitetônicas acontece pela análise dos discursos dos arquitetos sobre sua obra, onde buscaremos por evidências de conceitos científicos que, principalmente, tenham relação com uma modelação numérica da realidade. Essas evidências poderão estar explícitas, com referências diretas a conceitos científicos ou estarem intermediadas por traduções vindas de segmentos de uma cultura digital (como arte digital e mercado digital, por exemplo).

Entre as obras artísticas, uma seleção prévia aponta para as seguintes obras:

- “Dialogue with the Knowbotic South”, do grupo Knowbotic Research: modelação tridimensional de “agentes de softwares”, os robôs do conhecimento (ou knowbots) que tornam visíveis os fluxos de informação e de dados que são produzidas ininterruptamente por estações científicas na Antártida.

- “10_dencies” (versões: 10_dencies Sao Paulo e 10_dencies Tókio), do mesmo grupo acima; modelação de um mapa de conceitos sobre São Paulo e Tókio, baseado em banco de dados alimentado por informações de arquitetos e urbanistas e que possui uma camada tangível produzida por uma auto-organização do sistema.

- “OSMOSE”, de Charlotte Davies: ambiente interativo imersivo que pode ser explorado sinestesicamente: a respiração do usuário determina sua posição nesse ambiente em Realidade Virtual.

- “Interactive Plant Growing”, de Christa sommerer e Laurent Mignonneau: representante do que chama-se arte genética, pois simula o crescimento de plantas estimulado pelo toque dos visitantes/interatores.

- “Escalas” e “Tempo”, do LAbI (Laboratório Aberto de Interatividade); Instalações interativas elaboradas em concordância com a idéia de Schinittstelle.

A forma como estas obras se colocam frente ao quadro teórico será confrontada com a maneira com que o discurso científico e o conceitos da cultura digital foram apropriados em produções arquitetônicas contemporâneas, mais especificamente aquelas que corresponderiam ao que se chama “Non-standart architectures”26. Dentre elas podemos ressaltar:

- “Transarchitectures”; por Marcos Novak

- “Fresh H2O eHPO – Water Pavilion and Interactive Installation” e “V2_Lab”, por NOX;

- “Blur”; por Diller + Scofidio;

- “Embryologic Space”, por Greg Lynn.

- “Data Town”, por MVRDV.



Resumo

Introdução e Justificativa

Objetivos

Pressupostos Teóricos e Metodológicos

Pressupostos para a modelação do “Sistema Quimeras”

Módulos Previstos

Referências


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